Brasil era visto como "laboratório racial" e autores apontavam "perigos da miscigenação" no século 19
da Folha Online
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No século 19, cientistas europeus enxergavam o Brasil como um "laboratório racial", no qual acontecia o "fenômeno" da miscigenação. Ao mesmo tempo, estudiosos brasileiros como Nina Rodrigues e Sílvio Romero produziam artigos e estudos que destacavam as "mazelas" e os "perigos" da miscigenação.
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Livro esclarece as origens e o funcionamento do racismo no Brasil
As informações são do livro "Racismo no Brasil", da coleção "Folha Explica", da Publifolha. Escrito pela antropóloga Lilia Moritz Schwarcz, da USP, o livro ajuda a entender o cenário em que se construiu, historicamente, o "racismo à brasileira".
Saiba mais sobre o livro
Leia abaixo trecho do livro que trata desse período do século 19.
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O "LABORATÓRIO RACIAL" BRASILEIRO
Foi só no século 19 que os teóricos do darwinismo racial fizeram dos atributos externos e fenotípicos elementos essenciais, definidores de moralidades e do devir dos povos.14 Vinculados e legitimados pela biologia, a grande ciência desse século, os modelos darwinistas sociais constituíram-se em instrumentos eficazes para julgar povos e culturas, a partir de critérios deterministas, e, mais uma vez, o Brasil surgia representado como um grande exemplo; dessa feita, um "laboratório racial".
Apenas dessa maneira se explica, por exemplo, que já em 1844 o recém-criado Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro tenha realizado seu primeiro concurso, apresentando como mote o seguinte desafio: "Como Escrever a História do Brasil". Mais interessante do que a proposta em si (indicativa de como naquele momento se "inventava uma história local", que deveria ser diferente daquela da metrópole portuguesa) foi o resultado. O vencedor foi o naturalista estrangeiro Von Martius, defensor da tese de que a trajetória brasileira seria construída através da mistura de suas três raças: "Devia ser um ponto capital para o historiador reflexivo mostrar como no desenvolvimento sucessivo do Brasil se acham estabelecidas as condições para o aperfeiçoamento das três raças humanas que nesse país são colocadas uma ao lado da outra, de uma maneira desconhecida na história antiga e que devem servir mutuamente de meio e fim".15
Utilizando-se da metáfora de um poderoso rio purificador, correspondente à herança portuguesa, que deveria "absorver os pequenos confluentes das raças Índia e Ethiopica", o Brasil surgia representado pela particularidade de sua miscigenação. O país seria, portanto, o resultado futuro e promissor da convergência de três afluentes diferentes, que faziam as vezes das raças - a branca, a negra e a vermelha -, e sua singularidade ficava vinculada à conformação específica de sua população.
Não foi acidental, aliás, o fato de a monarquia brasileira, recém-instalada, ter investido numa simbologia tropical, que misturava elementos das tradicionais monarquias européias com indígenas, poucos negros e muitas frutas coloridas. Tornava-se nesse momento complicado destacar a presença africana, uma vez que ela lembrava a escravidão; mas nem por isso a realeza abriu mão de pintar um país que se caracterizava por sua coloração racial distinta.
Não obstante, se logo após a independência política de 1822 as elites intelectuais locais, adeptas da voga do romantismo, selecionaram no indígena (mitificado e afastado da própria realidade) um modelo de nacionalidade, já em finais do século 19 os negros e mestiços, até então ausentes da representação oficial, acabaram sendo apontados como índices definidores da degeneração, ou como os responsáveis pela falta de futuro deste país. Autores como Nina Rodrigues, da Escola de Medicina da Bahia; Sílvio Romero, da Escola de Recife; e João Batista Lacerda, do Museu Nacional do Rio de Janeiro, entre tantos outros, destacaram "as mazelas da miscigenação racial" e, informados por teorias estrangeiras, condenaram a "realidade mestiça local".
A interpretação realista da geração dos anos 1870 se contrapôs, dessa maneira, à feição positiva cuidadosamente imaginada pela elite imperial. Surgindo na contramão do projeto romântico, os autores de final do século inverterão os termos da equação ao destacar os "perigos da miscigenação" e a impossibilidade da cidadania. Já em maio de 1888, um artigo polêmico, assinado por Nina Rodrigues, aparecia em alguns jornais brasileiros. Nele, o médico ajuizava: "os homens não nascem iguais. Supõe-se uma igualdade jurídica entre as raças, sem a qual não existiria o Direito". Desdenhando do discurso da lei, logo após a abolição formal da escravidão, esse "homem de sciencia" passava a desconhecer a igualdade e o próprio livre-arbítrio, em nome de um determinismo científico e racial.
Nina Rodrigues não se limitava, porém, aos periódicos. Em 1894, publicou As Raças Humanas e a Responsabilidade Penal no Brasil), em que não só defendia a proeminência do médico na atuação penal, como advogava a existência de dois códigos no país - um para negros, outro para brancos -, correspondentes aos diferentes graus de evolução apresentados por esses dois grupos. Falando de um lugar privilegiado, intelectuais como Nina Rodrigues entendiam a questão nacional a partir da raça e do grupo e, dessa maneira, inibiam uma discussão sobre cidadania, no contexto de implantação da jovem República.
A adoção desses modelos não era, como se pode imaginar, tão imediata, mesmo porque implicava concordar que uma nação de raças mistas, como a nossa, era viável e estava fadada ao fracasso. No entanto, se internamente a interpretação gerava posições paradoxais, parecia não existir dúvidas com relação à visão que vem de fora: o Brasil havia muito tempo era entendido como um "laboratório racial", um lugar onde a mistura de raças era mais interessante de observar do que a própria natureza.
Agassiz, por exemplo, viajante suíço que esteve no Brasil em 1865, fechava seu relato da seguinte maneira: "que qualquer um que duvide dos males da mistura de raças, e inclua por mal-entendida filantropia a botar abaixo todas as barreiras que a separam, venha ao Brasil. Não poderá negar a deterioração decorrente da amálgama das raças, mais geral aqui do que em qualquer outro país do mundo, e que vai apagando rapidamente as melhores qualidades do branco, do negro e do índio, deixando um tipo indefinido, híbrido, deficiente em energia e mental".16 Gobineau, que permaneceu na corte do Rio de Janeiro durante quinze meses, como enviado francês, queixava-se: "Trata-se de uma população totalmente mulata, viciada no sangue e no espírito e assustadoramente feia".17
Gustave Aimard, que andou pelo país no ano de 1887, assim descrevia o "espetáculo das raças" que assistia: "J'ai remarqué un fait singulier que je n'ai observé qu'au Brèsil: c'est le changement qui s'est opéré dans la population par les croisement des races, ils sont les fils du sol" [Observei um fato singular, que só encontrei no Brasil: a mudança que se opera na população pelo cruzamento das raças - são os filhos do solo].18
Não se trata aqui de acumular exemplos, mas apenas de demonstrar como, nesse contexto, a mestiçagem existente no Brasil era não só descrita mas também adjetivada por esses pesquisadores estrangeiros, constituindo uma pista para explicar o atraso, ou possível inviabilidade, da nação. Mas mais interessante do que ficar repassando o discurso produzido alhures é enfrentar o debate local. Aqui no país, ao lado de um discurso de cunho liberal, tomava força, em finais do século 19, um modelo racial de análise, respaldado por uma percepção bastante consensual de que este era, de fato, um país miscigenado.19
13 Banton, p. 264.14 Estamos falando de autores como Gobineau, Le Bon e Taine, que procuraramestabelecer uma correlação entre atributos externos (físicos) e internos (morais), fazendoda raça um elemento ontológico e definidor do futuro das nações.15 Martius, "Como Escrever a História do Brasil", p. 381.16 Agassiz, p. 71.17 Raeders, p. 96.18 Aimard, p. 255.19 Os censos revelavam que, enquanto a população escrava se reduzia rapidamente, a população negra e mestiça tendia progressivamente a aumentar: 55% em 1872.
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"Folha Explica - Racismo no Brasil"Autor: Lilia Moritz Schwarcz Editora: Publifolha Páginas: 104 Quanto: R$ 17,90Onde comprar: nas principais livrarias, pelo telefone 0800-140090 ou pelo site da Publifolha
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